A clínica cirúrgica está progredindo muito, principalmente em alguns setores, como a angiologia, a qual se ocupa das doenças dos vasos.
O aperfeiçoamento tecnológico das últimas décadas, trouxe possibilidades de melhores diagnósticos e propiciou êxito no tratamento de muitos doentes antes considerados perdidos ou, como diz o leigo, desenganados.
A análise da evolução da cirurgia e, particularmente, da angiologia, nos permite acreditar que se possa transmitir, hoje, mensagem de otimismo aos médicos e de esperança aos doentes.
Ao se estudar as conquistas da cirurgia vascular, sente-se nítida ampliação de seu campo de ação.
Uma voz de alerta deve lembrar as possibilidades de recuperação integral de muitos doentes, antes condenados, para os quais a cirurgia moderna representa uma luz de esperança.
A visão sucinta da evolução da cirurgia no panorama mundial, da angiologia no Brasil e da assistência médica entre nós, permite compreender as possibilidades com as quais nos deparamos no momento.
As perspectivas estão se ampliando de maneira a impedir a previsão segura para um futuro ainda que próximo.
Poderíamos dizer que antes da anestesia e antes dos antibióticos, a cirurgia passou pela fase heróica. Naquela ocasião, o cirurgião deveria, além de corajoso, ser o mágico do bisturi. Seu virtuosismo estava quase que exclusivamente na velocidade. O êxito da operação dependia, diretamente, de sua rapidez. A fase da esterilização, associada ao conhecimento anestesiológico, permitiu a progressão para a fase técnica. Nesta, a metodização cirúrgica, com a padronização das técnicas, elevou o nível dos cirurgiões. O dom da velocidade deixava de ser fundamental. Todos os cirurgiões passaram, então, “a operar da mesma maneira”.
Entramos, depois, na fase fisiológica, época da intelectualização da cirurgia. Alguns nomes marcam essa época. Kocher, o grande cirurgião suíço que, em 1909, recebeu o Prêmio Nobel, revendo seus casos de tireoidectomia total, operação que retira a glândula tireoide, verificou que seus doentes posteriormente se tornaram apáticos. Sentiu que os curou de um mal, mas provocou outro, talvez pior que a doença original. Interpretando fisiologicamente o problema, passou a deixar parte da glândula e, para isso, idealizou as pinças que levam, erroneamente, o nome de Kelly. Nessa mesma época surge a simpatectomia, operação pela qual se retira parte do sistema nervoso simpático, logo depois divulgada e introduzida nos Estados Unidos por Leriche, o famoso cirurgião da dor e o grande mestre de Strasbourg. A simpatectomia é uma cirurgia estratégica pois, longe de ser mutiladora, é o que Leriche chamava de “operação fisiológica”, pelo fato de se obter o efeito desejado, melhora da circulação, distante do local da operação.
Passamos então, para a fase metabólica, que poderíamos também chamar de fase bioquímica, em que o doente é muito bem cuidado e suas alterações bioquímicas decorrentes da doença ou da própria cirurgia podem ser estimadas e corrigidas.
O domínio seguro da metabologia condicionou, ainda, maiores progressos. Apoiados na segurança conseguida pela anestesia, pela antibioticoterapia e pela metabologia, passamos para a fase experimental. Nesta, talvez os progressos em angiologia tenham sido os que condicionaram as mais amplas possibilidades em todos os campos da cirurgia, chegando até aos transplantes de órgãos ímpares. Passamos para fase da minimização da invasividade, que começou com a revisão das técnicas cirúrgicas abertas, para diminuir os danos teciduais desnecessários. O aforismo “grandes cirurgiões, grandes incisões” não mais se aplica. Hoje, com o avanço tecnológico, todas as técnicas consolidadas foram e estão sendo revistas, para sua realização por via menos invasiva, como endovascular, videolaparoscópica ou robótica1.
Com o aumento do tempo de vida médio, mais pessoas chegaram a idades mais avançadas, e assim aumentou a importância da arteriosclerose, que já era tratada desde a fase heróica. Acompanha a história e a evolução da cirurgia vascular, assim como acompanha a história do homem: basta nascer para a doença surgir. Os alemães têm pesquisas interessantes mostrando, aos 18 dias de vida, o espessamento da íntima da coronária. O estudo da árvore arterial em indivíduos que perderam violentamente a vida tem nos mostrado arteriosclerose muito avançada mesmo em pessoas jovens, onde a incidência costuma ser menor2.
História dos primórdios da angiologia no Brasil
Por volta de 1935 não havia, ainda, especialização cirúrgica bem caracterizada3. Os doentes com patologias semelhantes eram numerosos e todos os médicos tratavam de todas as doenças, não se preocupando em dar maior atenção a um grupo de doenças correlatas. Naquela ocasião, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, assumia, após concurso, a cátedra de Clínica Cirúrgica o Professor Alípio Corrêa Netto. Não existia, ainda, o conceito de especialista. Foi então que o Prof. Alípio dividiu o Serviço e reuniu os médicos em grupos. Os mais interessados em afecções vasculares ficaram sob a chefia do Dr. Octavio Martins de Toledo. Esboçou-se, em nosso meio, a Cirurgia Vascular como especialidade. Esse fato ocorreu antes mesmo que ela aparecesse como tal nos países ditos mais adiantados na época.
Naquela ocasião, toda a angiologia, praticamente, se resumia em amputações, laqueaduras de veias e, excepcionalmente, ligadura dos aneurismas das artérias dos membros (o que, frequentemente, levava à posterior amputação) e, mais raramente ainda, à extirpação das fístulas arteriovenosa.
Mais tarde vieram as simpatectomias, preservando muitos membros e recuperando, pelo menos parcialmente, numerosos sofredores de isquemia crítica.
O tratamento das varizes passou a ser mais amplo, levando à retirada da veia comprometida.
Os implantes arteriais, inicialmente, utilizavam artérias de cadáveres depois, tubos de Dacron e Politetrafluoretileno e, sempre que possível, veias do próprio paciente. Hoje stents e endopróteses, feitos na sua grande maioria de metal inerte, o nitinol, são colocados de forma endovascular guiados por fluoroscopia, método de imagem em Raio-X dinâmico, e com equipamentos apropriados. Método menos invasivo e mais simples.
2. Moraes IN. Atlas da Aterosclerose. São Paulo: Câmara Brasileira de Difusão Cultural, 1991.
3. Moraes IN. Propedêutica Vascular. 2nd ed. São Paulo: Sarvier, 1988.